quarta-feira, 7 de novembro de 2007

PÁG2 - GENE


Um sítio escuro que não era o seu aposento. Esse lugar de profunda escuridão era atravessado diagonalmente por luz, uma faixa. O pó subia-lhe pelos mais delicados raios luminosos. Fugindo do medo, do vazio atormentador, algo inanimado lança o seu receio sem direcção, talvez para as paredes de cor amarela desesperante. Esse ser era um cacto florido. No máximo da sua altura, contaria talvez com dez centímetros. A sua flor era de um vermelho tão vivo que parecia fluir para todo o chão. Quanto a barulho, nenhum, excepto um rufar de tambor com um compasso de batida de três em três segundos. Sem saber de onde, saltou uma pequena raposa. E ainda mais repentino, um outro som desconexado surgiu. Era o despertador hoje desnecessário.
Sim, às vezes podia-se-lhe chamar desmazelado, mas em outras ocasiões era extremamente perfeito, sobretudo em toda a lida doméstica. No entanto, solitariamente dentro de quatro paredes, para quê ser aprumado e romântico com o pequeno-almoço que se mete para o saco?
De qualquer modo, por muito que se vagueie por meio da mobília, uma pessoa só, um homem, não aguenta assim o passar dos minutos. A prevista saída deu-se já bem tarde, mas para quem não tem de dar satisfações, era bem cedo.
Desceu muitas e subiu outras tantas escadas, correu vitrinas, ruas, casas, lojas, canteiros sem conta, sem olhar para cima ou para qualquer direcção que a agulha de uma bússola pode experimentar. O seu local era realmente o chão.
Já deu para compreender que este homem não era para exclusividades. Significando que nem sempre os seus olhos queriam o chão asqueroso da cidade. De tempos a tempos até se ia sentando numa esplanada (de preferência com poucos clientes) a apreciar espectaculares exibições, certas extravagâncias da nossa também extravagante sociedade. Hoje, a quem apetecia ser extravagante era a Diogo! Faltava era saber onde. Não podia ser ao ar livre. A torneira do lavatório do céu ainda não tinha os parafusos bem apertados. A qualquer momento, das nuvens negras, do nevoeiro espesso saltaria uma valente rajada líquida.
Continuou a passear-se pelas ruas. Agora pela L, depois cruzou e prosseguiu pela Q.
Quando se encontro na esquina de uma pequena ruela, ouviu um grito de desespero saído de dentro dela. Pela voz esganiçada calculou que fosse uma rapariga ainda muito nova, provavelmente tendo como cenário o mesmo da sua falecida. Reagiu por instinto, não se preocupando com a situação que iria enfrentar nem com os perigos a que se expunha. Uma vida estava em jogo.
O larápio foi rapidamente avistado sem que Diogo observasse a vítima, a quem o assaltante tentava sufocar com um reles pano de flanela.
Vi os olhos, os olhos de uma criança de rua, tentando obter bens para a sua sobrevivência. No seu rosto via-se um choro raivoso como se rosnasse à volta de um osso. Mal lhe tentei pôr as mãos e ele já fugia como um animal selvático, com o rabo entre as pernas, deixando inclusive a bolsa da sua vítima a dez passos da pobre.
Ela estava estatelada no chão, tentando tomar algum longo folgo. Desistindo da sua perseguição, viu, finalmente, uma mulher de cabelos pretos e uns óculos com lentes que se assemelhavam a fundos de garrafa. Ajudou-a a levantar-se e sem exageros – ela tinha o seu quase metro e oitenta. Era deveras esguia o que dava ao seu aspecto o perfile de uma escada. As suas pernas longas estavam a descoberto até meio da coxa por causa de um rasgão na saia (micro). Tinha a cara de uma rapariga chique e, no entanto, inocente e um pouco tontinha. Ela ia pronunciando a cada instante, num murmúrio nada inteligível a palavra “obrigado” enquanto ia repondo os óculos bem no alto do seu nariz. A cada gesto que ela realizava, mais curioso Diogo ficava em saber o que fazia ali aquele cromo a limpar a bainha da saia, a ajeitar a franja, a afinar as cordas vocais. Deveras só isso já dava para…
- Que fazia você aqui…para além de…bem…ainda não sei como tratá-la.
Mas ela abandonou-o, evaporou-se.
- Estranho! A palavra já lhe estava atravessada no pescoço há algum tempo atrás.

Sem comentários: