quarta-feira, 7 de novembro de 2007

PÁG1 - GENE


Ilhargando a rua B, diria mesmo num local arredio, adusto pelo calor, assinalava-se o chamejar do Sol sobre as pedras da calçada.
Tudo era tórrido neste Setembro. Tudo parecia escaldante e, no entanto, voluptuoso, lúbrico, quer fosse a água de um bebedouro, um gelado de nata, o cabelo de uma loira ou até o pó que andava no ar.
Depois de dobrar uma segunda esquina, proferiu para a sua consciência que o transpirar estava prestes a processar-se. Quando confidenciava para si próprio que já ia uma pausa, revolveu-se algo no seu interior que dava para jurar que se pudera ouvir aquele calhau da garganta a cair-lhe em seco no ventre. Um semi-turbilhão subiu-lhe à raiz do cabelo e deu-lhe um valente puxão. “Caio”. Sentei-me numa boca de incêndio mesmo defronte do semáforo, a uma passadeira. Para quê pôr-me ao través? Já era grandinho e não tinha ninguém às dezoito horas em casa à minha espera, exceptuando o meu bichinho de estimação que não era ave rara, nem iguana, nem mesmo tarântula, mas sim um gordo gato amarelo.
No B.I. do bolso de trás estava escrito Diogo Gavião Calheiros, filho de Marta Gavião e Antão calheiros. Altura – 1,70; Idade 38; Estado Civil – Víuvo. Ainda absorto na sua atonia, não se tinha deslocado um centímetro. Vinha-lhe à memória a cara cheia de hematomas da falecida esposa, com a pele como porcelana, violentada numa rua daquela miserável cidade em pleno dia. Esse acontecimento tinha endurecido tanto o seu coração, que a sua voz e o seu olhar assemelhavam-se a fios de facas.
Todo o seu intelecto, toda a sua alma identificavam-se com qualquer forma de terror. Melhor seria, contudo, apagar esta palavra, terror. Era certo que ele era macabro, no entanto, um desconhecido digno de interesse.
- Oito horas! Como é tarde!
O céu preparava-se para fazer chover torrencialmente. E foi uma questão de dois segundos para tal acontecer.
Os seus ossos começavam a sentir a humidade quando Diogo alcançou a porta da sua casa. A cada gota que caía dos seus cabelos negros encrespados, a cada andar que o elevador sulcava, era ansiedade que foliava no seu peito. O desejo de isolamento (finalmente) do mundo. Bem, do mundo…talvez não, mas pelo menos da sua parte louca. Atrever-se-ia mesmo a exclamar: - Meu Deus, quero fugir! Os olhos deles repugnam-me. O que dizem tem sentido, sentido que para mim não faz sentido. Que faço eu aqui? Não, não me respondeis! Isto é retórico e o retórico não quer resposta.
A porta foi fechada atrás de si. O amarelo foi avistado no tapete ao pé do sofá.
- Bichano, não deixes que eu fique doidivanas.
O gato não prestou muita fixação de espiríto, apesar do dono fazer mais silêncios do que diálogos amonologados.
Colocou os dossiers dos Hotéis Minerva (onde ele tinha o cargo de acessor do gerente) em cima da mesa da exígua sala.
Do sarcófago branco (frigorífico), retirou um pacote de leite, bebendo largos golos. Trata-se de algo pouco higiénico, mas a ratazana estomacal já tinha os dentes do tamanho das mandíbulas de castores.
Agora no meio da cozinha, quase que paralisado, permitiu que a noite esfregasse o som dos ponteiros do relógio nos seus tímpanos. Um fastio, uma insónia invadiram-no…apoderaram-se estes sintomas da sua sobriedade, de tal modo que o tomaram de um modo embriagado sobre a cama.
O felino surgiu ronronando junto dos pés do transtornado e logo saltou para cima dos cobertores. Foi alcançado por umas poderosas e carnudas mãos e, no entanto, de pequena dimensão. Ambos sentiam mutuamente os seus respirares. As suas pulsações tinham um bater ridículo.
- Sabes bucha, ainda bem que amanhã me dão folga para eu apertar os poucos ossos dos poucos amigos que ainda me restam! Isto porque as minhas constantes alunagens fazem-me aterrorizá-los até que quase nenhum deles me reste. Vão-me dando conversa, não pela minha posição social, mas pela minha carência sentimental e psicológica. Queres saber ainda algo mais: nem iremos falar com esses amigos. Erremos por aí até algum lugar, numa dessas quaisquer esquinas, passaremos o nosso ridículo tempo.
- Miau – retorquiu o gato secamente, pressentindo que a situação dele pouco ou nada mudaria se saísse ou não saísse.











No não fazer nada, as horas foram passando. A alta noite já se fazia sentir. A roupa foi secando no corpo sádico. A salientar havia muita coisa, tudo o que existia ou podia não existir, real ou abstracto, factos, negócios, circunstâncias, condição, assunto, mistério, tudo em evidência naquele rosto, naquele busto. A possessão abstrata que assolava a sua psyché. A profundidade da alienação era precipiciosa mas não ao ponto de não dar atenção à sua saúde.
À medida que tirava a gravata e começava a retirar os botões de suas casas na direcção de baixo para cima, foi-se mostrando uma pele que não era alva nem torrada, era dourada como os templos budistas do Oriente. O tronco era-lhe pouco favorável, quase fraco, os músculos lá se iam denotando. Podiam-se apreciar (se é que esta palavra não é um pouco forte), grossas venosas saídas em tonalidades de verde. Desabotoava os botões de punho, lembrando-se da sorte e do azar aparente dos outros. Ironias do Destino. E se por aqui seguisse, quero dizer, se divulgasse tudo o que ele acreditava sobre o Destino, não encontraria botões suficientes.
Foi-se aconchegando a um lençol cinzento aveludado, com o gordo aos pés. De certo modo gostava de ouvir o ronronar do gato para aniquilar o tempo de abismal silêncio.
O seu sono de peso – meia tonelada – abateu-se sobre a forma de dois desígnios de algo que aflige:





- Ai, ai…

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