quarta-feira, 3 de outubro de 2007

A MOURA DO RIO (parte II)


- De que fala a sua senhora?
- Disparates… Respondeu o senhor Gouveia com um abanar de cabeça.
- Manuel … continuou a senhora – não atravesse o rio. As feiticeiras têm afogado vários homens nele. Dizem que sentem os passos nas margens, daqueles homens que mostram ter mais vitalidade. Logo a seguir lançam-lhe um feitiço e fazem-nos adormecer nas proximidades da água. Quando atingem um sono mais profundo, saem da água em bando, com os seus corpos nus. As mais fortes nas artes de magia negra elevam-nos a vários metros do chão, como se fossem um junco. Depois aproveitando o transe em que mergulharam o homem, elevam-se elas próprias do solo. Reúnem-se em torno dele e banqueteiam-se com os seus fluidos. Quando o corpo está transformado num naco de carne ressequida, deixam-no precipitar-se nas águas. Seguidamente e já revigoradas pelo macabro alimento, mergulham no rio e terminam o processo, sepultando os restos mortais dos homens debaixo de pesados seixos, no fundo do leito do rio, nas zonas mais escuras e profundas das águas. Poucos escapam. Quem revelou o destino destes homens foi um dos poucos que sobreviveu. Um velho que vive no cimo da montanha e que nunca mais se aproximou de águas correntes. Diz que se salvou, unicamente pela distracção da líder e como era demasiado velho não o perseguiram.
- Não sejas tonta mulher. O Manuel já é crescido para não acreditar nessas lenga-lengas. E quanto a esses homens devem-se ter cansado de alimentar tantas bocas em casa e fugido para o estrangeiro ou foram enfeitiçados, mas por algum rabo de saia, que os levou para algum lugarejo. Deixa ir o rapaz se é essa a sua vontade.
Com as suas largas passadas, Manuel alcançou em pouco tempo as margens do rio, que até à poucos minutos nada tinha de anormal e agora tudo parecia ter mudado. Com o nascer da Lua, as sombras nocturnas transfiguravam a paisagem. Brilhos e sons estranhos apareciam e desapareciam a grande velocidade. Manuel atravessou o rio com um sorriso nos lábios. Como é que algumas pessoas tinham tanta imaginação, pensava ele. Já do outro lado da margem, parou um pouco antes de iniciar a subida da montanha, para lançar um último olhar ao rio, que ficava agora para trás.
O presunto que a senhora Gouveia lhe tinha oferecido como petisco fazia-lhe sede. Como diziam os antigos “água corrente, não mata gente”, logo decidiu voltar atrás e molhar a boca com a água do rio. Devido à sua elevada estatura foi obrigado a se prostrar quase por completo, sobre as águas. A água fresca estava a saber bem aos seus lábios, quando sentiu algo mais consistente a tocar-lhes. Era quase a sensação de um beijo. Soergueu um pouco o rosto da superfície da água e julgou ver a face de uma rapariga submersa a alguns centímetros do ponto de onde ele bebia. A corrente e o borbulhar da água e muito provavelmente, as histórias da dona da taberna tinham criado aquela ilusão de óptica, que fez parecer a Manuel avistar uma rapariga muito jovem e bela, de cabelos longos e quase brancos, que pareciam flutuar para a superfície, como se se tratassem das raízes de um salgueiro. Quando voltou a focar o seu olhar, já nada viu.
Quando se tentava levantar foi atacado por uma forte sonolência. As pernas vacilaram sobre um estranho peso em cima dos seus ombros. Enquanto os seus membros inferiores fraquejavam e arrastavam todo o corpo para o solo, um breve rasgo de consciência recordou-lhe as palavras da mulher. Seria aquele o sono das feiticeiras? Não teve tempo para encontrar a resposta, pois o seu corpo tombou duro na margem lamacenta do rio. O homem ficou rijo em posição fetal e profundamente adormecido. De dentro das águas começou a emergir um corpo. Uma rapariga de olhos azuis profundos e de cabelo escorrendo litros de água ao longo do corpo nu, inclinou-se junto ao corpo do homem adormecido. Apoiando as suas mãos geladas no peito quente dele, fez pousar os seus lábios nos deles. Após este gesto começou a sentir-se agitada e concentrando-se esticou ambas as mãos na direcção do corpo do homem. De mãos abertas provocou a levitação do corpo ao nível da sua cintura. Colocando as suas mão sobre o peito dele foi movendo-o ao longo do caminho que o levaria até casa. Ao fim de várias curvas no caminho e muito provavelmente ter percorrido uns dois quilómetros. Depositou o corpo adormecido sobre um tufo de erva alta, na berma de uma encruzilhada. A partir daquele momento deixava-o á sua sorte, enquanto ela regressava, já de corpo ressequido pelo ar da noite, ao leito do rio. Alguns segundos depois a feiticeira protectora era agarrada pelos cabelos.
- Sua traidora. Que andas-te a fazer? Deixas-te escapar o nosso sustento para meio ano de vida. Não penses que nos vamos contentar com a energia absorvida através de beijos, como sabemos que fazes. Amanhã, ou com sorte, depois de amanhã já estarás novamente a definhar. Não sejas tonta ao pensar que os podes salvar. Só estarás a esgotar as tuas energias mais rapidamente.
Enquanto a líder lhe puxava os cabelos, as restantes feiticeiras negras do rio rasgavam o corpo da “protectora”, com as suas garras e lambiam o sangue que saia das feridas provocadas, a fim de mitigar a sua fome. A feiticeira “protectora” tentava cerrar os dentes com toda a força, para não soltar uma lágrima que fosse, para não gritar de dor nem um momento que fosse. As dores que lhe provocavam eram porém dilacerantes.
- Tu não tens poder sobre mim. Eu faço o que bem entender e não penses que te receio. Mata-me até, e o meu espírito irá perseguir-te cada vez que estiveres á superfície da água.
- Não me desafies traidora porque sabes que me desfazia facilmente de ti. Serias repasto para os peixinhos porque a única coisa que eu ia querer do teu corpo era um alvo para os meus escarros.
No momento em que a feiticeira líder disse a última frase, foi atingida por uma cuspidela.
- Eu só precisava de um motivo – disse a líder. À sua volta as águas agitavam-se furiosamente e as servas tinham deixado de atacar o corpo enfraquecido da “protectora”. A líder sustentava agora o corpo moribundo da feiticeira “protectora” pelo pescoço. Do corpo da feiticeira mestra tinham crescido escamas que se eriçavam ao mesmo tempo que os cabelos negros e encaracolados também se elevavam no ar. O rosto da feiticeira mestra atingiu o máximo de cólera. De todas as extremidades dos dedos das mãos e dos pés começaram a emergir estacas afiadas. Com um grito lancinante a feiticeira enraivecida contraiu o seu corpo e quando o distendeu, cravou com toda a força as estacas dos pés no ventre da “protectora” e as das mãos no pescoço. Os locais perfurados ficaram momentaneamente mais lívidos até que o sangue começou a escorrer pelo corpo, atingindo a água. Os olhos da feiticeira perfurada ficaram lívidos e esbugalhados e com a língua presa. Porém – Tu vens comigo! - Expirou ela.
Cada fio de sangue, que tocava na água do rio, transformava-se numa serpente. Em pouco tempo um novelo infernal de répteis rodeava todas as feiticeiras, apanhando-as de surpresa. O número destes animais continuava a aumentar em catadupa. A feiticeira mestra sentiu algo mais frio que a habitual temperatura da água. O corpo daquela que tinha trespassado, estava gelado, mas não tinha sido só isso que tinha acontecido. As serpentes que as tinham envolvido estavam transmutadas sob a forma de cordas petrificadas, que tinham envolvido todo o bando. O grupo de feiticeiras estava agora a sentir os corpos a submergirem sob o peso do que as prendia. Estavam imobilizadas e a sofrer o destino que tinham dado ás suas inúmeras vítimas.
- Onde estou eu? Adormeci aqui? Ia jurar que cai junto ao rio! – Manuel apalpou o corpo para verificar se não continuava a dormir. Quando passou a mão pelo tecido das calças sentiu a lama ressequida. O episódio do rio começou a surgir na sua cabeça, mas parecia tudo um sonho. Dirigiu o olhar para o céu e a Lua tinha cruzado metade da abóbada celeste. Deviam ter passado três horas desde que tinha atravessado o rio. Olhou na direcção do caminho que o levaria a casa, mas não podia deixar de pensar na rapariga do rio. Só havia uma coisa a fazer. Voltar atrás. Sentia-se estranhamente cansado mas a curiosidade dava-lhe forças, de tal modo, que os primeiros mil e quinhentos metros foram calcorreados em passo de corrida. Quando chegou finalmente junto ao rio, o silêncio era absoluto. Aproximou-se o mais possível da água e nada viu.
- Enlouqueci! – Exclamou. Virou as costas, mas na sua mente algo o fez voltar novamente o rosto para a água. Ainda conseguiu ver a estranha rocha que se afundava. A ser engolido pela rocha, viu o rosto que o tinha beijado.
Chorou!
Estava vivo!
Por Eumesma

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