quarta-feira, 3 de outubro de 2007

A MOURA DO RIO (parte I)


Era Segunda, e de acordo com a tradição era dia de Feira Quinzenal. No dia de mercado, as “gentes” das terras altas desciam de todas as vertentes e caminhavam para o centro do vale, onde por razões administrativas se tinha desenvolvido um local para as trocas comerciais. Homens, mulheres, crianças e bestas desciam a serra ainda de madrugada, muito antes do Sol conseguir esboçar a mais ténue luz a nascente do vale. Em molhos, sacos ou sobre carroças depositavam os parcos e pobres víveres que os bravios solos graníticos conseguiam produzir. Dentro das sacas de tecido remendado iam sendo sacudidos vários produtos, como os grãos dourados do milho ou amarelados do centeio e do feijão. O cheiro denunciava cebolas e alhos e a cor verde os restantes vegetais. Os sons do cacarejar de uma galinha deixavam antever a sua possível mudança de dono, tal como o mugir de um pequeno mas gordo vitelo, que ao longo de vários meses fora engordado diariamente com farinha, ou o balir triste e ansioso de um cordeiro, que foi desgarrado do rebanho. Com semblantes sérios, de verdadeiros homens de negócios ou com ligeiros sorrisos, naqueles que tinham naturezas mais descontraídas e confiavam a gestão dos seus bens à sorte, assim iam avançando em direcção à Feira.
Nas proximidades do mercado havia um rio que distava uma milha do local das vendas e era um dos últimos obstáculos a transpor até ao objectivo final. A dimensão desse rio era ainda considerável, pois eram precisas cerca de vinte grandes pedras, assentes sobre o leito fluvial, para permitir a travessia a “pé enxuto”. A velocidade das águas impunha algum respeito e eram poucos os que se atreviam a atravessá-lo a nado, por diversas razões.
Junto a um pequeno afluente, alguns metros depois de executada a travessia, podiam ser avistadas várias jovens, que com a ajuda de pequenos panos ou simplesmente com as areias do fundo do regato, tentavam retirar a poeira ou mesmo o sujo encardido dos pés. A crosta de sujidade era o resultado de muitos quilómetros, dias e caminhos calcorreados. A tarefa de limpeza servia para que após secarem os seus pés, fossem calçadas as socas e assim cumprirem a lei, que impedia as pessoas de andarem descalças nas ruas do mercado. Durante a tarefa de limpeza, que na verdade era mais uma consequência da sua condição de povo pobre, as mesmas raparigas, aproveitavam para coscuvilhar a vida dos seus conhecidos, mas em especial dos vários rapazes, com que pretendiam se cruzar na Feira.
Enquanto sussurravam, davam gargalhadas ou pequenos gritinhos, aproximava-se delas um belo bezerro. Com a pelagem luzidia, era encaminhado por uma corda em torno dos pequenos cornos, que despontavam no topo da cabeça. O animal era ladeado pelo seu legítimo dono, Manuel, um rapaz maduro e forte, que após a viuvez inesperada de sua mãe, tinha com alguma dificuldade empunhado os deveres de manter e sustentar os bens do seu lar. Por onde quer que Manuel passasse, conseguia impor com naturalidade a sua presença, motivada pela sua elevada estatura e pela amplitude que os seus ombros ostentavam. Ainda como elementos auxiliares, era possuidor de um cabelo e olhos negros, que brilhavam como se fossem as pérolas negras mais polidas que alguma vez pudessem ter sido vistas.
Os comentários das raparigas eram inevitáveis ao constatarem o volume de massa muscular, que se estava semi-oculta por baixo da camisa de linho muito alvo, que o rapaz vestia. Com todo o calor que aquele Verão trazia, a camisa do rapaz arregaçada nas mangas e ligeiramente aberta no centro do seu peito, aumentava ainda mais a excitação das raparigas.
- Belo animal – disse uma delas de forma muito ambígua. Com esta observação, a gargalhada foi geral entre as raparigas e os sorrisinhos sarcásticos massivos.
O rapaz manteve o olhar no caminho a seguir e permaneceu de semblante sério ao proferir – mas o teu pai não o pode comprar, com as fracas prendas que tem – com esta frase por parte do rapaz, as reacções fizeram dividir o grupo feminino. Parte ocultou o sorriso e a outra parte ficou com o semblante sisudo.
O sol estava agora no zénite celeste e desta vez exercia o seu poder sobre a vida das pessoas, ditando a hora do almoço. Naquele dia escaldante, as pessoas afastavam-se para as sombras com as suas merendas e os mais endinheirados para junto das tascas. Manuel prendeu o bezerro debaixo de uma pequena árvore e começou a remexer na sacola que trazia a tiracolo. Com a mão no seu interior, sentia a textura de algumas côdeas de pão-milho e a forma de um chouriço de cabaço. Porém não teve tempo para começar o seu manjar, porque o ser mais odioso que conhecia, aproximou-se dele. O senhor Alvarez, aquele que todos sussurravam ser o maior mafioso e trafulha de toda a região. Um usuário dos puros, que fazia cumprir todas as cobranças de créditos pedidos a ele, sem que para isso tivesse qualquer tipo de escrúpulos. Também não era tarefa difícil, pois dizia-se em surdina que engordava as autoridades. Manuel odiava aquele homem. Sabia que aquele ser mesquinho tinha perseguido o seu falecido pai em alguns momentos em que passou dificuldades monetárias. Tal preocupação e pressão consumiram a fraca saúde que restava ao pai de Manuel. Logo após a morte, o rapaz pegou em todo o dinheiro que dispunha para os trabalhos agrícolas desse ano e espalhou-o em cima da mesa da tasca, onde era habitual encontrar Alvarez, a realizar os seus contratos de sangue.
- Caro Manuel, como vai o homem mais rijo e honesto de todas as terras em redor? Belo bezerro que tens ai! Quanto queres por ele?
- Este bezerro não é para as suas mãos, melhor destino tinha ele em definhar debaixo desta árvore a ser engordado pelas suas mãos.
- O menino está cada vez mais insolente, mas no fundo sabe que sem mim é bem capaz de não vender esse belo animal.
- Antes a fome e a miséria. Deixe-me…
- Se assim queres! Cumprimentos à tua mãe.
Manuel odiava aquele gordo seboso, mas reconhecia que o seu controlo nos negócios efectuados, era quase total.
A tarde ia avançando e a sombra que antes era curta, alongava-se agora no sentido contrário ao horizonte. Manuel continuava com o pequeno bovino amarrado à árvore. O animal tinha começado já à algum tempo a dar sinais de ansiedade. Enxotava nervosamente as moscas do seu corpo ou só mesmo movimentava o ar, na ausência dos insectos. O calor tinha sido muito, e quer o homem, quer o animal tinham a sua pele brilhante e húmida pelo suor que lhes escorria. À medida que o tempo ia passando, as pessoas iam dispersando e era notório que uma grande parte delas se encaminhava para as várias saídas do mercado. Manuel começava a ver as possibilidades de venda do animal a diminuir. Elaborava já como ia voltar a subir a serra com o animal, pois a pequena criatura dava mostras de estar esfomeada e cansada. Enquanto reflectia, de alguma forma distraído, não se apercebeu da aproximação do senhor Gouveia, o proprietário da tasca mais frequentada. Todos lançavam rumores e também haviam obviamente apreciações sobre este homem. Com a sua robustez que culminava com uma farta pança, ouvia-se dizer que nunca ninguém o tinha trapaceado e que era mais justo que o juiz. Era uma espécie de Rei Salomão dos mais desfavorecidos de coração justo. Muito por certo foi essa mesma razão, que o fez abeirar de Manuel, pois mal chegou junto do jovem, disse-lhe: - Quanto queres pelo animal? Havia de dar uns belos bifes! O jovem disse-lhe o preço justo de acordo com a compleição do animal.
- É muito caro Manuel. Sabes bem que ninguém te entregará essa quantia. No entanto, em consideração pela memória do teu pai, pelo bom amigo que era, fecho negócio contigo, se na próxima Feira me entregares mais cinco galinhas.
Manuel ficou algum tempo em silêncio, pensando na proposta do homem. Um facto fez acelerar o aperto de mão de ambos, pois Manuel tinha vislumbrado o Alvarez à entrada da tasca do Gouveia, de semblante sarcástico.
- Muito bem senhor Gouveia. Vai ter já amanhã as suas galinhas.
- Calma rapaz. O que não me faltam são galinhas. Não precisas de ter pressa. Anda amarrar o touro, nas traseiras da minha casa e tomar um copo com a minha família.
Manuel só aceitou o convite para se certificar em que condição ficava o animal, pois estava a custar-lhe desfazer-se do bicho. Algumas horas depois de muita conversa na parte traseira da casa do senhor Gouveia, Manuel despertou do seu discurso sobre os trabalhos e negócios da quinta e afirmou ter de partir. Todos os presentes olharam para o céu e constataram que o sol já devia ter desaparecido à mais de uma hora. A mulher do senhor Gouveia tomou a palavra e disse: - Não posso permitir que regresses a casa a estas horas, ainda para mais tendo de atravessar aquele malfadado rio – proferiu a mulher com algum terror no rosto.
- A senhora não tema por mim. Conheço bem os caminhos e não há larápio que me assuste. Tentava assim Manuel tranquilizar a preocupação patente em todo o corpo da senhora.
- Diz-lhe homem. O que dizem por ai sobre aquele rio. Ele que fique cá esta noite e amanhã regressa a sua casa. Não o deixes atravessar aquelas águas.
- Não ligues à minha mulher que se emociona facilmente com tudo o que ouve. Em parte ela tem razão. Fica cá, pois já se faz tarde.
- Marido não o deixe partir. Elas matam-no!

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