terça-feira, 2 de outubro de 2007

APANHAR FERRADURAS

Certo dia, pai e filho preparavam-se para sair bem cedo para o mercado, pois tinham um longo e difícil caminho pela frente, até ao seu objectivo final. No momento de partirem o homem mais velho, apresentou duas sacolas cheias de coisas que poderiam vender no mercado. Quando entregava uma delas ao seu filho, ele negou pegar nela dizendo, que se o pai tinha um burro, não era para ficar a pastar tranquilamente num verde prado, mas para ser utilizado. O pai olhou com desgosto para o seu filho, pois já há algum tempo, notava que ele estava cada vez mais preguiçoso. Com um ar triste tentou explicar ao rapaz que a carga que levavam era suficiente para ambos, que não era necessário exigir aquele fardo ao velho burro, que já tanto tinha feito por eles e que agora devido à sua idade avançada, merecia o devido descanso.

O filho continuou a protestar e a insinuar, que o pai o queria obrigar a carregar algo desnecessariamente, quando podia atribuir essa tarefa aos criados.

O pai voltou a demonstrar o seu ar de tristeza e uma vez mais explicou, que os criados eram precisos em outras tarefas importantes, como na manutenção da casa e da respectiva quinta e isso já lhes tomava muito tempo.

Vendo que o filho se recusava a aceitar as explicações, resolveu ele próprio carregar os dois alforges sobre as suas costas cansadas e doridas de muitos anos de trabalho. Vergado pelo peso que suportava, iniciou a caminhada que os levaria até ao mercado. Era seguido um pouco mais atrás pelo seu filho, que parecia ele próprio com preguiça em arrastar as pernas. A muito custo e com várias paragens, a progressão foi-se dando.

O orvalho sobre a vegetação foi sendo seco pela aragem fresca da madrugada. À medida que as horas iam avançando o vento reduzia de velocidade e o sol ia impondo um ambiente abafado e tórrido, que em tudo parecia dificultar o velho com o peso da carga.

Quando ao fim de algum tempo, após uma parte do percurso em que se encontraram expostos aos raios inclementes do astro solar, encontraram uma zona de sombra e de pedras, o velho decidiu parar. Desceu com o cuidado preciso a carga de cima dos seus ombros e procurou na berma do caminho uma pedra onde o seu descanso encontrasse mais efeito. Quando acabou por se acomodar, não conseguia acreditar, que o seu filho ainda vinha assobiando longe do local onde ele se encontrava.

O pobre velho perguntava a si próprio, como tal podia ser, como poderia aquele rapaz ser tão preguiçoso, que nem livre de carga, conseguia acompanhar as passadas do pai. Foi então, que distraído nestes pensamentos, viu a alguns passos de si, entre duas pedras do caminho, o que parecia ser uma ferradura. Como o seu filho estava agora mais perto daquele elemento de metal, propôs-lhe que apanhasse a ferradura do buraco e a guardasse.

O rapaz olhou para o local que o seu pai lhe apontava. Fez um olhar de escárnio e parecia surpreendido com o que o pai lhe pedia desta vez. Para que queria ele guardar aquele pedaço de ferrugem? Se ainda fosse uma bela jóia ou até mesmo uma moeda, mas aquele velho pedaço de metal? Não lhe parecia valer o esforço de se baixar. Empinou o nariz e continuou por diante. Mais uma vez aquele rapaz desiludia o pobre pai, mas algo no seu coração o parecia consolar. O senhor tinha uma secreta sensação dentro de si, que quase lhe segredava, que ao longo daquele dia, um simples evento podia surgir e vir a ser a causa para alterar o desagradável comportamento que o filho vinha tendo. Baseado naquela secreta esperança, o velho dobrou-se sobre o buraco e desencravou a ferradura de entre as rochas, guardando-a quase religiosamente num bolso fundo da capa que vestia. Colocou novamente a carga sobre os seus ombros e partiu no encalço do seu filho, seguindo o som do seu assobiar despreocupado.

Os pesos sobre as costas do Velho eram desde algum tempo uma impossibilidade, como lançar uma carga de água sobre chamas. O caminho foi penoso mas a satisfação de alcançar o objectivo foi o reconforto para as dores. Por fim o mercado estava ali á vista.

Pela sua grande experiência e reputação, em fornecer bons produtos a preços justos, o velho conseguiu rapidamente vender toda a mercadoria que tinha trazido consigo. Como já não tinham mais nada para fazer no mercado, o velho fez sinal para que o filho deixasse de vadiar entre os mercadores e o seguisse de regresso a casa. Quando se dirigiam para a saída do mercado, passaram em frente da casa onde um ferreiro costumava trabalhar furiosamente nos dias de mercado, mas hoje por alguma razão alheia ao conhecimento do Velho, a porta da oficina estava encerrada. Diante da porta estava um homem ao lado da sua montada. A cara do desconhecido estava muito perturbada e o seu corpo em constante sobressalto, de forma que, atraiu a atenção do velho. O filho reparou na reacção do velho e disse-lhe:

- Pai, que temos nós a ver com esse pobre diabo. Se continuar a dar assim tanta atenção a tudo o que cruza o nosso caminho, nem uma semana chegava para a jornada. E eu já não aguento a dor de pés.

- Meu filho é só alguns minutos, não custa nada ajudar um pobre coitado, como tu dizes.

O Velho aproximou-se um pouco mais do outro homem, enquanto se desviava um pouco da montada do desconhecido, que parecia muito velha e queixosa. Ao olhar para a expressão daquele cavalo velho percebeu perfeitamente como se devia sentir aquele animal.

- Então homem, porque está nesse desassossego?

Devido ao seu estado ofegante, o homem lá confessou a custo, o que o deixava naquela preocupação.

- Sou o novo médico das aldeias em redor, e acabo de saber que há mais um doente á minha espera na aldeia mais distante do povoado, mas para infelicidade minha e desespero da família do doente, o meu cavalo ficou sem uma das ferraduras na última visita que fiz. E agora disseram-me que o ferreiro foi ao casamento de uma filha e não vai estar. Estou desesperado, esta pileca velha que arranjei, já não se consegue arrastar e sem a ferradura que lhe falta ainda menos. Não sei que fazer!

- Calma homem, tudo se vai arranjar. Hoje é capaz de ser o seu dia de sorte. Durante o caminho para cá, encontrei uma ferradura que vai servir na perfeição e tenho a certeza, que se utilizarmos as ferramentas do ferreiro, ele não se vai importar. Segure ai no cavalo.

Em alguns minutos a experiência do velho a ferrar os seus próprios cavalos na quinta, fez com que o ar preocupado do médico se fosse dissipando, para lhe devolver um grande sorriso de serenidade. Porém, o médico lembrou-se que não tinha como agradecer ao velho. E de novo o seu rosto de preocupação, revelou o estado desconfortável em que se encontrava frente ao velho.

- Não tem que agradecer. Vá e ajude quem precisa verdadeiramente.

O médico remexeu um pouco na sua trouxa e lembrou-se de um saco de cerejas, que lhe tinham oferecido como forma de agradecimento pela sua consulta anterior, e logo o estendeu para o velho. Pelo trocar de olhares, o velho sabia que não podia recusar. O médico partiu á velocidade que a cansada pileca lhe possibilitava e o velho ficou com um saco de cerejas entre as mãos.


Finalmente pai e filho podiam retomar o caminho de regresso para a propriedade. Depois de terem andado parte do caminho, o velho começou a observar o olhar do filho sobre o saco de cerejas. Essa observação fez surgir uma ideia na sua mente. Deitou mãos ao saco de cerejas e pegou num galhinho com duas. Comeu uma delas e deixou cair a outra. Sem nada dizer, o filho baixou-se para apanhar a cereja caída, levando-a à boca. Um pouco mais adiante, o pai repetiu o mesmo gesto e o filho voltou a baixar-se para apanhar outra cereja caída. Ao longo do caminho o progenitor foi copiando sempre o mesmo gesto, até que parou a sua marcha. Virou-se de frente para o filho, que continuava a segui-lo e retirou mais uma vez uma cereja que deixou cair no chão, entre o espaço que separava ambos. Ambos olharam para a cereja caída sobre o solo poeirento e voltaram a olharem-se nos olhos.

Desta vez não eram precisas palavras. O olhar do filho demonstrava que tinha aprendido a lição. Não se tinha baixado, quando pensava que não era necessário e agora era obrigado a baixar-se várias vezes, segundo a vontade de outro e por necessidade própria.

O filho deu nesse dia um passo no caminho para ser homem. Aprendeu que a preguiça não providencia nada a ninguém.
Por Eumesma

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