Ao iniciar esta divagação, colocou-se uma primeira indecisão. Que titulo lhe havia de dar? Cidade v/s campo? Urbanidade v/s ruralidade? Metrópole v/s aldeia? As mesmas palavras ou sinónimos ligeiramente diferentes? Não consegui escolher aquele que melhor se adequava ao que queria escrever. Portanto, ficou uma simples abreviação de “versus”, como titulo. No fundo, foi assim que me senti, com um pé em cada um dos mundos. Um versus. Sou suspeita pela falta de imparcialidade, mas também nunca o quis ser. Não tenho que defender ambos os mundos de igual forma. Quero simplesmente descrever o que vi, e ainda o que considero mais importante, o que senti. A cama era pequena, o quarto acanhado, mas afinal, era a cama de uma residencial no interior da capital. Aqui no meu quarto sempre estive habituada a uma cama grande (que até este momento me parecia pequena). Mas o que mais estranhei não foi bem a dimensão. A custo me habituei ao colchão, às roupas da cama. Não quero dizer que fossem desconfortáveis, mas eram daquele género que provoca insónias. O sono não é um só. É como que repartido. A culpa não era porém, só deste poiso nocturno alugado. Por muito bem que até estejam isoladas as paredes das estruturas nas cidades, há sempre um constante murmúrio de fundo, como se o mar estivesse a fustigar a costa ali a alguns metros. Constantemente, ou como se existisse um zumbido permanente dentro dos ouvidos. Um pouco mais de atenção e no ar da noite, conseguia-se divisar em que direcções rumam os carros durante a noite nas ruas. Menos atenção é precisa para ouvir de forma inequívoca a sirene da ambulância que passa a grande velocidade. Custa-me a adormecer. É cansativo permanecer acordada. Os meus ouvidos estão habituados a outros ruídos. Ruídos que por mais agudos e/ou tempestuosos que sejam, são sempre ruídos puros. Sons do campo. Vento e grilos, sapos e corujas, galos e pardais. Fora a natureza e os bichos, não existe na noite do campo nada artificialmente produzido por humanos. O cansaço de muitas horas na cidade acaba por me quebrar as pernas. Esse peso trepa-me pelo corpo e acaba por atingir a minha cabeça. Há uma obrigação inconsciente para o dever adormecer. Tenho de cerrar os olhos para retemperar forças, encher meia bateria para um novo dia. No campo, mesmo que essa bateria esteja esgotada, quase no fim das suas capacidades, há sempre um fio de terra, que é como que uma tomada de energia, que recarrega todo o ser, mesmo em pleno esforço. A cidade cansa-me num sentido só. Uma nova manhã. A cidade já acordou à muito, acorda como que sozinha. No campo sou eu que acordo nele. Na cidade a cortina está fechada, somos vigiados de todos os lados, a luz ou a chuva da manhã são ofensivas. No campo todos os elementos nos dão o bom dia que precisamos sentir para fortalecer o ânimo. Avanço para o banho. A água é aparentemente transparente, mas de algum modo parece estar saturada de gordura, como se já tivesse lavado vinte corpos antes do meu. Tenho saudades da minha água do campo. Que nasce a metros no solo da montanha, a quilómetros da minha torneira, sem qualquer fonte de poluição pelo meio. Todo um monte de granito para lhe filtrar as impurezas. Sinto falta da água dos campos e dos alimentos por eles produzidos. Do que grande parte vi crescer para depois consumir. O alimento que sei a que mãos foi tratado. Aqui na cidade o alimento parece me enfraquecer. Engorda-me, incha-me o ventre, pesa-me no sangue, mas no fundo é insípido, sem verdadeira energia. Um alimento que alimenta mas não sacia por inteiro. Meto-me pelas ruas, pelos transportes públicos. Todos sabem que lado tomar da rua naquela determinada hora. É como se fossem idênticos a um carreiro de formigas, um bando de mortos vivos cinzentos. Sim, foi essa a cor que me disseram que essa gente da cidade tinha. Observei-os mais de perto e tinham razão. São cinzentos em todos os aspectos. Cinzentos na cor da sua pele, cinzentos na sua fisionomia, cinzentos nas suas expressões, cinzentos até quem sabe nos seus pensamentos. Sinto-me excluída, nunca poderei pertencer à cidade. Ganhei lodo desde que nasci as cores do campo. Um simples tom rosado nas minhas faces denuncia a minha origem. Um sorriso despreocupado pela manhã na rua e é observado como um escândalo para essa gente cinzenta. Mas nem tudo é desânimo. Não sei se essa gente é capaz de observar os pormenores que eu observo. Uma vez mais matei saudades do chiar do Metro. Tanta gente vai adormecida por esse som. Que sabe já o odeia, mas eu adoro-o. Aquela violência de fricção metálica fascina-me. Gosto de andar de Metro. De resto é Janeiro, as árvores dispersas pela cidade ainda estavam adormecidas, não as conheci no seu esplendor. Condição que deve ser novamente ignorada por todos os que circulam nas ruas. Feche os olhos, sabe dizer se as árvores por onde passa todos os dias têm folhas? Certamente nunca desperdiçam muito tempo a responder a uma pergunta como esta. Eu respondo, das que observei, ainda estão todas despidas, com algumas excepções. Algures umas palmeiras exóticas e nas proximidades uma mediana, mas bem tratada magnólia grandiflora (quanto a esta daqui a umas duas semanas deve ter já grandes flores brancas). Deixei-as com saudade e elas saudades de mim, por que certamente há muito que ninguém as tratava por tu. Voltei para as minhas árvores em floresta. Estive seis dias na cidade e tive de descansar de seguida três no campo para recuperar a pessoa que era. Pergunto-me como conseguem viver essas pessoas que moram na cidade. Como vivem verdadeiramente? Será que vivem ou passam pela vida vivendo? Porque tudo à volta deles não tem vida, são já protótipos de caixões, de procissões funerárias.
NO CAMPO DEIXASSE DE VIVER, NA CIDADE MORRESSE FINALMENTE.
2 comentários:
Mais uma vez, e como se fosse surpresa, Adorei o teu texto - Descrição fantástica...
Beijinhos cheios de cor à partir de um local cinzento mas colorido... tudo depende dos olhos e do ânimo :)
Muitas das pessoas cinzentas com quem te cruzas vivem na cidade, mas não lhe pertencem. São pessoas como eu, acorrentadas à necessidade de ter um trabalho que lhes pague as contas e os ajude a sobreviver nesta terra que há muito perdeu o brilho e a identidade, mas cujas raízes estão longe. Umas pertencem ao campo, outras ao mar. Nasci e cresci com areia da praia colada ao rosto e dedos a saber a sal.
Belo texto, se bem que triste.
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